quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Para a aniversariante do mês



Minha sogra


O prazo de validade de minha sogra está vencendo! 

E antes que se diga que sou cruel ou que minha exclamação se dá como fruto de clássicas rusgas entre nora e sogra, explico: ela nunca me incomodou, nem eu a ela.  Mesmo porque ela mora a quase 500 km de SP, onde vivo, o que não facilita cutucadas.

O que digo é que ter 98 anos faz qualquer pessoa ficar perto do prazo de vencimento.
E D. Itsu - ou D. Teresa como se auto nomeou há muitos anos atrás - está com 98 primaveras no curriculum.

Sou muito feliz em poder dizer que ela acolheu-me na família.  Com certa reserva por eu não ter olhos puxados, é verdade, mas acolheu. E perdoou todos as minhas gafes por não conhecer detalhes da cultura japonesa.

O caqui maduro que eu suponha largado no aparador era oferta para o Buda.  Eu não tinha nada que tirá-lo de lá!! 
O incenso queimando levava as orações para cima, eu não devia apagá-lo.
E dar dinheiro pra família do morto é ato de caridade porque se tem muita despesa nesse momento.  Aliás, momento mais de alegria do que de tristeza para os mais velhos, que têm a cultura mais arraigada e demonstram abertamente a alegria em ver alguém sair desta para uma melhor.
Estranhezas para mim que ela ia explicando naturalmente.

Aos 88 anos me dizia: quando eu ficar velha e doente você vai cuidar de mim? 
Eu tinha que falar da minha idade já avançada também, da saúde perfeita dela, das 3 filhas que jamais me deixariam cuidar, caso ela viesse a precisar.  
Muitas vezes me comprometi dizendo que se fosse o caso, cuidaria sim. 

Mas quem tem 7 filhos, tem gente demais para dar atenção e é mais fácil sair confusão nos cuidados, do que faltar o bendito. 

E que cuidados?  Quase nenhum ela precisa. 
Tirando a cadeira de rodas que usa por puro medo de usar uma perna "consertada" e que funciona direitinho se ela quiser... De resto, está tudo em ordem: come direitinho, faz crochê, ama ver as borboletas nas flores enquanto eu as rego e repara nos brotinhos da roseira.

Posso levar uma mudinha da branca, D. Tereza?
Ah! da branca?  não quer da vermelha?

Ciumenta das rosas, me oferece até orquídeas, mas a rosa branca vai ter que ficar pra outra vez porque ela desconversa.

Realmente pouco se precisa fazer fisicamente por ela.  Cuidados na hora do banho e ao passear no jardim da cidade, basicamente. 

Ela adora passear. Vai conversando com todo mundo que encontra pelo caminho e as vezes eu penso que ela é uma japonesa bem atípica.  É conversadeira.  Eu diria até que ela é desbocada.  Sempre foi um pouco.
  E, agora que está com a memória recente fraca, parece que tirou os limites sociais de convivência e simplesmente fala pro gordo que ele é gordo, pro encurvado que ele é corcunda.  

Em muitos momentos tenho vontade de entrar dentro dos ralos da cidade e me esconder até ela acabar os comentários, mas não posso. Tenho que remendar o que ela fala e achar uma saída para as saias justas que ela arruma.

Acho que a pior situação que passei com ela, numa mistura de risível e desconcertante foi no hospital da cidade dela.  
Dizendo que estava se sentindo "zoada" - e por zoada pensamos em tudo e qualquer coisa - resolvemos levá-la ao pronto socorro.

Nenhuma filha presente naquele momento, lá vou eu acompanhá-la.  
Enfermeiros pra lá e pra cá. Aguardamos atendimento. Ela só observa todo mundo.  Ri para crianças que, sei lá o porquê, estão no meio de adultos.

Estranho a quietude dela. Talvez seja porque não esteja bem de saúde mesmo, ou já estaria falando com Deus e com todo mundo, penso.
Ela está muito observadora.  Segue, com os olhos, o enfermeiro mais animado do PS.

Magricelo, dentro de calças jeans bem apertadas, camiseta branca e jaleco é uma peça rara que destoa dos demais.  Acalma as mães aflitas e depois revira os olhos pra mim.  
Percebo que ele tem os olhos pintados com lápis.  Lápis pretos, passados caprichosamente abaixo dos cílios inferiores. É engraçado, mas combina com ele - uma caricatura viva e solícita!

Carinhoso com as crianças, explica pro garoto acidentado que o dentinho quebrou, mas que nos lábios não precisará costurar nada.  O menino dana a chorar com a notícia e todos rimos.  Ele pega o menino no colo e passa na frente da minha sogra que o segura pelo braço e pergunta na lata:  você é homem ou mulher? Você não tem peitos, mas parece mulher!!!  
Ele dá uma gargalhada estrondosa e fala pra ela escolher. Para ele, tanto faz! 


Ah! Minha sogra querida!
Vinda do Japão aos seis anos, tem pouca lembrança do navio.  Só gravou a demora da longa viagem.
Jamais aprendeu a ler, apesar das 3 filhas professoras.  Viveu na roça, teve comércio, aprendeu português e comeu batatas cruas - não sabia como usar aquela “comida diferente”.  Trabalhou muito nessa vida nos afazeres da casa que era o que lhe cabia na dinâmica da família.

Prometida em casamento aos 14 anos, achou o escolhido magricelo e feio, "mas deu um excelente marido", ela fala até hoje.
Casou-se aos 17, comenta. 
As contas não batem, mas não há quem possa esclarecer!
Meu marido é seu filho caçula e eu sou a nora...
Nora... Mas quando alguém pergunta, ela já não sabe mais responder nora de qual dos seus 4 filhos homens!  
Uma pena. 
E uma graça também, porque a gente pode se reinventar quando está com ela e ser qualquer pessoa que quiser: ela acolhe muito bem.
Parabéns D. Teresa!!!


           

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Tempo, tempo

Não que o mal estar tivesse passado subitamente. Meu corpo doía muito e distinguir se era só uma gripe ou qualquer outra coisa é função do médico, não minha, mas estou em dúvida se devo permanecer na espera.

O problema é que aguardo atendimento no PS, mas tenho a sensação de que estou num hospital-escola-maternal, recém inaugurado.

Os atendentes, ao meu ver, não têm mais que 15 anos e os médicos, talvez uns 18! 
São eles que irão “cuidar” de mim? 
Muita gente jovem junta neste lugar.

Fico pensando que o HD do cérebro deles tem muito espaço livre para armazenamento de dados, então devem ter guardado direitinho tudo que estudaram – como eu um dia guardei – e podem fazer um excelente atendimento.

Será?

E a experiência de vida? Enquanto se debruçavam nos livros e nos pseudos pacientes para estudar não deixaram de viver as farras, os erros e acertos próprios da idade?

Bobagem minha.
Claro que esses profissionais viveram a época da faculdade com tudo que têm direito e talvez até um pouco mais. 

Mas uma pulguinha fica atrás da minha orelha resmungando que eles não viveram o suficiente para diagnosticar algumas coisas, ou para compreender o palavreado descritivo dos mais velhos que tentarão relatar o que sentem.
Têm a experiência que a idade lhes permite. E talvez esse seja o problema.

Sei lá!  Estou senilmente(?) confusa.

Aguardo, como todo mundo, que minha senha apareça no painel.

Ainda tenho a chance de sair correndo, voltar para casa e tomar um chá na cama, enquanto leio um livro e espero a suposta gripe passar. Se for dengue o procedimento não será muito diferente – apenas restrições a alguns remédios.

É. Acho que vou para casa.

Vejo que um médico chama a paciente pelo nome, no corredor. 
Se eu encontrasse esse rapaz no meio da rua, o teria por um adolescente terminando o colegial – cabeça cheia de dúvidas sobre qual carreira escolher, pressão, vestibular e paquerinhas.

Socorro! O mundo rejuvenesceu?!! 
Só eu continuo envelhecendo. O tempo não passa para mais ninguém. 
Ou os jovens estão tomando conta do mundo?!!!

Cadê o médico velhinho e compreensivo que conheceu minha avó e meu avô, que me viu dar os primeiros passos? Aquele que só de bater o olho e fazer um rápido exame já dá uns bons conselhos e certeiro diagnóstico.

OK. Estou em pânico a troco de nada!

São jovens esses médicos que me atenderão hoje, mas são profissionais e devem estar super atualizados no uso de recursos para diagnósticos.

2333.  Minha vez!  

Caminho pensando que estou sendo injusta com esse pessoal que nem conheço. 
Lembro-me da dificuldade que sofreram meu irmã e minha irmã, que são profissionais da saúde, pelo mesmo motivo: eram jovens, diplomados e tinham cara de crianças felizes no começo de suas carreiras. Os pacientes mais velhos sempre estranhavam – pensavam que eles eram os auxiliares de sala a preparar o atendimento.

Paciência! Vou abrir a porta, dizer boa tarde e... Oferecer um pirulito?!!

Óbvio que demorei um pouco para arrumar o foco no bigode grisalho que acompanhava o lábio daquele senhor que me cumprimentava e apontava a cadeira para eu sentar.

Não era para ter um imberbe sentado ali?  Cadê o HD limpinho, os escaners, lasers, ressonâncias ?

Um senhorzinho vai me atender? Será que está atualizado? Participou de congressos recentemente?

Pânico de novo!  Agora, pelo motivo contrário.

Estou ficando velha mesmo!   Nada que não combine com chá, repouso e um bom livro lido na cama, conforme recomendação médica recém recebida.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Civilidade

2

Sempre digo que o jeito de dirigir de uma pessoa reflete o modo que essa pessoa conduz sua vida.
Geralmente as pessoas riem dessa minha afirmação, mas convido os que moram em cidades grandes e pegam trânsito pesado todo santo dia, a observar as atitudes de seus amigos e a forma como dirigem.
Existe uma relação direta na questão.

Também sempre digo que a maior prova de civilidade de um motorista é o pisca-pisca, ou seta - aquela luzinha que fazemos piscar ao sinalizar para que lado pretendemos virar.
Está certo que muita gente não distingue direita de esquerda e por mais que a mão do relógio sirva de alguma indicação para muitas, não faz o menor sentido para outras.  Tem gente que nem usa relógio. Ou usa “na outra”
Mas não tem problema. Sinalizou para algum lado, já dá tempo para diminuirmos a velocidade e ficarmos em alerta. 

Pois bem, a razão da minha afirmação lá do início é que já presenciei situações que confirmaram minhas suspeitas.
Essas pessoas esquecem que carro é só um meio de transporte - têm nele, além do símbolo de status e poder - tão comum em nossa sociedade atual -, um recurso para suas catarses idiotas.

Outro dia perguntei para uma conhecida que vive dizendo: “estudei pouco para trabalhar pouco” (e por isso ela ganha pouco e vive reclamando!) o que ela havia ensinado para sua filha de quase 7 anos sobre o farol vermelho. 
Ela dirige feito um motorista de trator tresloucado, na cidade -  já saí com ela.

Como assim?

O que você disse para sua filha sobre o dever de parar ao farol vermelho, explico.

Ah! Que a gente tem que parar porque... se não parar, leva multa.

Não passou pela sua cabeça explicar que é a vez do outro passar, que a cidade precisa “funcionar” alternando quem passa e quem espera?

Não!  Mesmo porque, se não vier ninguém muito seguido e não tiver câmeras, eu passo no vermelho!

Uau!! E assim caminha a humanidade!!
Com mães tontas ensinando seus filhos desta forma torta.

Um mundo de gente imediatista que quer “chegar antes”, a qualquer custo.


Talvez cheguem primeiro no céu e vejam alguma vantagem nisso, vai saber.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Civilidade



Estatísticas falando sobre a falta de educação no trânsito não faltam neste país.
Aliás, não faltam no mundo.
O que falta é gente civilizada e não só no trânsito.
Ainda não bolaram um índice de civilidade e educação - seria complicado medir.
Costumo dizer que não sou nenhuma condessa em termos de educação, mas procuro ser educada e civilizada, sim.
Respeito é bom; eu gosto e pratico. 
Espero que pratiquem também.
E não estou falando de educação de dizer bom dia, obrigada e suas variáveis – palavras que devem ser ditas sempre, mas que são apenas o arremate da prática da educação.
Chamo de civilizado quem sabe praticar a educação e o respeito. Algo mais do que ter saído das cavernas, parado de oferecer sacrifícios humanos aos deuses e viver em cidades, organizar mercados financeiros e olhar galáxias com telescópios.
Estou falando de respeito - daqueles de fazer ao outro, exatamente e sem descontos, o que queríamos que fizessem para a gente.
Impossível praticar?  
Só para os que não estão interessados.

Nos próximos dias, publicarei uma sequência de textos sobre o assunto.
Abaixo, o primeiro deles:

1

Elevador lotado no horário de chegada ao trabalho.
Empresa grande, muita gente embarcando na caixinha de sobe e desce.
Entra uma tartaruga de terno e gravata, com fones nos ouvidos. Anda de ré para o fundo do elevador.
     
Cutuco a pessoa que está me afogando com a gigantesca mochila e digo: répteis devem utilizar o elevador de serviços.
Eu sei que ele não está me ouvindo porque ouço a música dele. Faço sinal para o rapaz tirar os fones.

Cara feia e desdém enquanto todos riem no elevador, ele pergunta “o que?” – bem alto, aliás, porque mantém um dos fones num ouvido.
Aponto a mochila; ele pede desculpas e tira a bugiganga das costas.

Duvido que ele goste de ser espremido por alguém no elevador. Mas não se preocupou em ver se estava atrapalhando.
Detalhe: para tirar a tralha das costas, esbarrou em metade do povo do elevador e nem pediu desculpas.

Há normas e dicas de comportamento no elevador da empresa – algumas tão básicas que levaram os funcionários aos risos quando divulgadas.  Mas percebo que são necessárias para os sem desconfiômetro - vide o exemplo da enjoadinha tartaruga engravatada.


quarta-feira, 30 de março de 2016

Contações

Cabide


Qual mãe nunca foi um cabide?
Pode não ter pensando no assunto, mas teve a mesma função, além daquelas muitas outras que as progenitoras costumam ter, como mamadeira gigante e guardiã.

Esses dias eu estava esperando um ônibus e tive a oportunidade de ver mais uma mãe-cabide!
A mulher tinha um filho no braço esquerdo e trocentas coisas penduradas no braço direito.

Meu conforto em ver que não era só eu que já tinha vivido essa experiência não amenizava em nada a dificuldade dela em segurar criança, sacolas e ainda subir e se segurar dentro do ônibus. 
E ela pegou outra linha, não deu nem para oferecer ajuda.
Aí lembrei um episódio que me ocorreu quando eu ainda era um cabidão.

Fui buscar, de ônibus, meu filho mais velho na escola. Carro no mecânico.   Saio eu carregando a sacola com os apetrechos da filha mais nova que ainda era de colo, mais a própria neném.

Silvana Moretti


Não foi muito fácil a ida, mas equilibrei tudo, numa boa, dentro do ônibus.   E o pessoal até que é bem solidário – o motorista não dá um arrancão de uma vez.  Ele puxa bem mais a primeira marcha e o único mau que causa é uma certa falta de fôlego em mim, que na verdade é falta de fôlego do motor, com aquele ronco horrível.  Mas tudo bem.   Pelo menos a gente não cai.  Só fica meio asfixiada.

Mas eu esqueci de um detalhe, ou não imaginei, digamos, quantos apetrechos teria que trazer na volta.


Meu filho costumava levar mochila e lancheira na escola.  Ou seja, seriam mais dois itens para eu carregar, porque criança carrega bem bonitinha suas coisas - com pose e tudo - só até a mãe aparecer, claro.   Depois entrega tudo que tem à mão, como se esse ato estivesse programado em seu DNA.
E havia um agravante naquele dia: aniversário de coleguinha e seus balões coloridos.  2 balões!! 
Meu filho, carinhoso, havia pegado um para ele e outro para levar para irmã.
Besteira!!   Era tudo para ele mesmo, porque ela não tinha idade para brincar com bexigas ou qualquer outra coisa.  

Lá vou eu andando pelas calçadas de Santo Amaro, carregando a menina, a mochila, minha bolsa, a sacola da neném e 2 enormes balões!! Um cabide ambulante.
Vou andando e pensando que preciso me livrar dos balões de qualquer jeito.
Como vou entrar no ônibus com tudo isso e ainda ajudar meu filho a ficar em pé?

Tento um papo com o menino, dizendo que em casa tem um monte de balões para encher e que poderíamos brincar à tarde toda com eles, mas que aqueles, nós não poderíamos levar... “não dá para mamãe carregar no ônibus”.
Claro que um pirralho de 3 anos não iria entender exatamente a história toda, ficaria confuso e eu estaria com o problema resolvido, se me livrasse deles.

Ledo engano.  Ele simplesmente argumentou que sabia que tinha bexigas em casa, mas que aquelas eram especiais porque havia lutado muito para consegui-las.
Lutado?  Como?
Tive que empurrar o Pedro e o Thiago que queriam tudo para eles!
Ai, caramba!
Bexigas.   Balões cheios de ar com conotação de espólio de guerra era demais para mim!
Perguntei se ele havia comido o fígado dos amiguinhos também, para adquirir a força deles – não era assim que se fazia com os inimigos, na Antiguidade?   
Mas isso ele não entendeu e achei melhor parar com o papo ou seria chamada na escola por mordidas descontroladas.

Chego no ponto de ônibus muito mais cansada que o normal. E não era pelo carregar de tudo.   Era pura aflição.
Penso em acender um cigarro e encostar nos balões. Assim, sem querer... Esbarrão, vento, pedidos de desculpa, choro por alguns minutos e pronto: resolvido.

Mas acender cigarro com criança no colo é assassinato, mesmo porque faltava mão para qualquer coisa que tivesse que ser feita.
Fico ali enrolando para achar uma solução.  Os ônibus que me servem passam, mas eu nem tento subir.

Aí tenho uma ideia que penso ser brilhante e, de repente, solto os balões sem mais nem menos, como se eles tivessem escapado.

Meu filho boquiaberto, atônito e espantado olhando os balões que, estranhamente voam para frente, em direção à rua...
Ufa! 
Estranho os balões não subirem, seguem em frente, para o meio da rua... Muito estranho.  Mas o que importa é que...  Estou livre deles!  Nenhum pio ou choro!  Só espanto do menino.

Tô livre, tô livre!

Mas... O senhorzinho à minha frente - que também aguardava um ônibus - ao ver os balões, sai correndo para o meio da rua e os agarra, como se estivesse agarrando a própria vida e traz os dois balões de volta para mim!

Sorriso banguela, calça surrada, chapéu de palha e pensando que fizera o maior favor do mundo para uma mãe-cabide, fala: tá aqui, dona... E faz carinho na cabeça de meu filho, comentando...  “Nessa fase de criança pequenina nóis carrega muitcha cousa.  A gente precisa de ajuda!”

Tenho certeza que aquele homem conhece o conceito profundíssimo de mãe-cabide!!    Deve ter sido um pai-cabide.

Tive que esperar o senhorzinho tomar o ônibus dele, primeiro, para depois...
Bem... Soltei novamente os balões e finalmente peguei o ônibus carregando só o restante da tralha.

Ah! A orelha do mecânico ficará boa, disseram os médicos.
Minhas mordidas não estavam contaminadas!


quarta-feira, 23 de março de 2016


E eu não podia deixar de registrar...




Shitake




Começava a ter dúvidas se comera shitake ou um cogumelo alucinógeno qualquer na noite anterior.

As nuvens haviam amanhecido com as mãos abanando. O vento, mais misterioso que o normal, insistia em não contar seus segredos. A mulher no ponto de ônibus cheirava a copo plástico mal lavado de liquidificador antigo. O urubu fazia inveja a ela, plainando. Seu cachorro mostrara a plaquinha de nãoacreditoquevaimeabandonaremplenosábado! 

Tudo estranhamente animado e com ares de festa. Deve ser o shitake misturado à expectativa.

Dia especial. Tudo vale para o encontro com amigos marcado na livraria Cultura da av. Paulista.

Alegria, alegria, minha gente! Cada pedra da calçada é sua cúmplice na empreitada e ajuda no passo, alavancando os animados calcanhares.

Shitake dá sempre essa sensação? Pretende comê-los todos os dias dali para frente.

O ônibus tem cara de que carrega baratas de tamanho mini como passageiros clandestinos. Todos confiando que o motorista de unhas compridas e sujas, que cumprimenta cada um que pisa no segundo degrau, os levará ao destino, em segurança. Sorriso matinal carrega carimbo de noite bem ou mal dormida.

E vamo’quevamo! Detesta essa frase, mas hoje até ela cabe.

Para o encontro, leva na bolsa o cartão de natal que comprara no final do ano anterior. Nunca o enviara porque às vésperas das festas não achou o endereço do destinatário.  Guardou tão bem guardadinho o bendito envelope com o endereço que só o encontrou no carnaval. Já não faz sentido. Mas leva para mostrar que se lembrou dele na ocasião.

Bobagem. Não fará sentido para o amigo que deixará de ser virtual. Será flesh e osso!

Precisa lembrar que a barba foi tirada e deve procurar por alguém de rosto sem pelos. 

Um livro, um rosto. Rosto com barba.
Não.
Rosto feminino.
Não.
Livros.
Rosto com barba.
Rosto sem barba.
Livro.
Rosto semibarbado interessado em livro.

Achei!!!!  Grita no coração, mas hesita na ação! Vai que não é o amigo virtual e ela abraça um desconhecido qualquer despejando o carinho que guardou no baldinho do coração!

Shitake mexe até com as pupilas?
Mas não altera o abraço, o reconhecimento, a confirmação e a gostosura do encontro.

Café, conversa rápida. Um tatear a identificação, a afinidade que se presumia sabida e comum aos três, agora confirmada.

Ela, na verdade, é uma intrusa que ficará uns 15 minutinhos para falar um oi e olhar no olhinho do amigo querido que visita a cidade no final de semana.  Um encaixe na agenda.
De embrulho, ganha a amiga do encontro do amigo.

Pouco tempo, muito a ouvir e a falar. Uma delícia de encontro.
Não poderia ser diferente: ele é um gentleman. A amiga dele, a delicadeza em pessoa.

Sente que dentro dela todas as falas são em capsLk, todos os gestos em slow motion. Sabe que é por aí que a agulha da vida vai alinhavando uma colcha mágica de contatos e amizades.

Mas já é hora de ir. Tem compromisso. 

queroficar explícito numa perna indo e outra fincada no chão querendo não se despedir chega a ser infantil, mas é tão verdadeiro!

E tchau!

Ela não sabia, mas saiu como coelho da Alice, meio Amèlie Poulain, meio passarinho novinho na palma da mão... Que delícia!

Ah! E acabou por esquecer-se de entregar o cartão que levara.

É... O encontro foi especial mesmo. Não adianta botar a culpa nos cogumelos de ontem à noite, pensa já no metrô.





Obrigada Ramon (No Insta: Palavra de Literatura e http://palavradeliteratura.blogspot.com.br/) e Thais (Literaturanews – no Insta) pelo encontro tão gostoso. 
Que possamos nos reunir mais vezes!


segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Colorindo o outubro rosa





Confesso que fui para a exposição de Frida Kahlo com o rosinha básico do outubro-alerta pregado no peito.  Um brochinho gracioso que ganhei.

Mas fiquei pink quando cheguei lá e vi que a exposição é chamada: “Frida Kahlo – Conexões entre mulheres surrealistas no México”.  Imaginem a riqueza de conteúdo!

Saí com uma paleta imensa de cores!! Sensação de cheiro de tinta a óleo pregada no nariz. Figuras e imagens passeando insistentemente na caixola da leiga aqui.

Uma surpresa que me fez repensar tudo que ia escrever.

Na internet tem muita informação a respeito de Frida, Tomie e o Instituto Tomie Ohtake, então não vou contar o que já está mais do que contado. 

Vou ficar só no propósito da exposição e os aspectos que podem ser destacados dessas duas figuras femininas que são tão emblemáticas.

Como o nome da exposição já diz, não estão expostas obras só de Frida Kahlo que, ao longo da vida fez apenas 143 trabalhos, mas de um grupo de mulheres que tinha em Frida o eixo de um diálogo cultural no momento da arte surrealista do México. 

Além de amigas, essas mulheres compartilhavam a sensibilidade aguçada nas artes que faziam. Muitas são mecenas (Natasha Gelman para Frida, por exemplo) e completam o grupo no que diz respeito à ajuda e apoio artístico, com aberturas de galerias e exposições exclusivas, críticas de arte em revistas de destaque etc.

Foi brilhante o trabalho da curadora Teresa Arq ao reunir as obras  fazendo um recorte muito específico daquele momento artístico. Além das telas há fotos, desenhos, esculturas, jornais, roupas etc

Deve ter dado um trabalhão pesquisar, conseguir trazer o material e organizar. Muita coisa é de acervo particular.  O resultado é excelente.

O surrealismo já estava instalado e assimilado na Europa quando esse grupo de mulheres avança no conceito desta corrente artística  – desprezando convenções (que é a marca do movimento), com o detalhe de elas extrapolarem as fronteiras incorporando imagens fortes, cores e traços impositivos, assimilando a cultura nativa mexicana às obras.

Muito interessante o conceito todo porque se o surrealismo já era dar asas ao onírico, ao acaso e ao inconsciente, nas mãos delas a arte fica potencializada, reforçada e cheia de elementos típicos do país – com cores e temáticas muito peculiares.

Elas fazem, inclusive, catarse de seus momentos particulares sem nenhum pudor e com muita habilidade - o aborto que Frida sofreu e as dores reumáticas II (foto ao lado) de Remedios Varo estão registras em telas e são chocantemente belas! 

E como esse grupo virou grupo?

Época de guerra na Europa – algumas se mudaram para o México para sempre. Duas delas são americanas.

Elas já participavam do movimento surrealista em seus países – direta ou indiretamente (algumas eram esposas de artistas) e haviam conhecido a cultura mexicana através de Frida, em 1938, numa viagem que ela fez a Paris. 

Outras foram visitantes esporádicas e amantes da cultura mexicana que realizaram obras onde se vê claramente a influência e a assimilação cultural que seus passeios imprimiram em suas percepções.

São várias mulheres e não vou listar o nome de todas para não alongar o texto. As que mais saltaram aos meus olhos de leiga foram Maria Izquierdo, Rosa Rolanda, Remedios Varo. Mas há muitas outras – todas cheias de cores e criatividade fantásticas.

Quadros que no Realismo eram chamados de “natureza morta”, nas mãos delas não tem nada de morto – frutas têm feições de bicho, a folha é um gafanhoto e assim vão. María Izquierdo nomeia uma de suas telas de “Natureza viva”.  A foto ao lado é de quadro de Frida: "Noiva assustada ao ver a vida" - 1943.

Das cabeças de seus personagens saem de tudo: bichos, plantas, enfeites, esboços irreconhecíveis.  Ou são cabeças que suportam de tudo.

Uma delícia identificar ou, pelo menos, tatear o pensamento e os significados registrados nas obras.  Minhas minhocas tiveram companhias ímpares desta vez.

E ver obras originais é uma emoção incansável.

Frida sempre me chamou a atenção em duas características:  por parecer que ela mesma, por si só, era uma obra de arte viva com seus vestidos coloridos, apetrechos e enfeites enormes – aspecto que só ficou reforçado coma esta exposição nas muitas fotos apresentadas. 

E pelo lado pessoal no que diz respeito à perseverança: foi uma menina que teve poliomielite e como sequela ficou manca; depois, adulta, sofreu um grave acidente e passou muito tempo na cama – com dores e todas as dificuldades que podemos imaginar.

Ainda assim, pintava.  Deitada.

Essa persistência em fazer arte apesar dos percalços da vida é algo para ser notado e destacado. 

Tomie Othake –  não teve todas essas dificuldades com a saúde – pelo contrário, foi longeva e ativa até o final de sua vida.  


Mas imaginem o que foi para uma mulher de origem oriental, que até os 40 anos foi dona de casa e mãe, cuidado exclusivamente de rotinas familiares, deixar vir à tona sua arte adormecida - ela dizia que desenhava muito na infância.




Quando resolveu desenhar e pintar novamente, o fazia em sua pequena sala de visitas e dizia que trabalho faz bem sempre.




No caso dela, o trabalho era arte naquele momento.

E que arte essa nossa artista plástica produziu! 





Muitas de suas obras estão espalhadas pela cidade e você pode ver outras que estão sempre expostas no ITO – num local separado e sempre acessível.
  
A foto abaixo é do Instituto - que foi desenhado por seu filho Ruy Ohtake.







Não é fácil manter a antena ligada em meio a dificuldades e rotinas.





Muitas mulheres vão sendo atropeladas e engolidas por tarefas e momentos que lhes parecem mais urgentes, ou por se acomodarem em situações complicadas, e acabam por deixar para lá suas habilidades artísticas.

Espero que sejam bem poucas a desprezar suas percepções porque precisamos disto tudo, desta dinâmica de vida cheia de altos e baixos, permeada e exposta na arte.

Então o recado é este: não se deixem atropelar tanto que além de não prestarem atenção às habilidades artísticas, não cuidem de suas saúdes também.

É mês de chamada para cuidar da saúde feminina, principalmente a prevenção do câncer de mama. Então vamos aos exames médicos.

E já que somos assim, persistentes e plugadas em várias tomadas, vamos fazer o pacote todo e já marcar os exames para os companheiros e companheiras também!!






Quem sabe passamos de outubro rosa
 para multicolorido!