Minha sogra
O prazo de
validade de minha sogra está vencendo!
E antes que se
diga que sou cruel ou que minha exclamação se dá como fruto de clássicas rusgas entre
nora e sogra, explico: ela nunca me incomodou, nem eu a ela. Mesmo porque ela mora a quase 500 km de SP, onde
vivo, o que não facilita cutucadas.
O que digo é que ter 98 anos faz qualquer pessoa ficar perto do prazo de vencimento.
E D. Itsu - ou D. Teresa como se auto nomeou há muitos anos atrás - está com 98 primaveras no curriculum.
Sou muito feliz em poder dizer que ela acolheu-me na
família. Com certa reserva por eu não ter olhos puxados, é verdade, mas acolheu. E perdoou todos as minhas gafes por
não conhecer detalhes da cultura japonesa.
O caqui maduro que eu suponha largado no aparador era oferta para o Buda. Eu não tinha nada que tirá-lo de
lá!!
O incenso queimando levava as orações para cima, eu não devia apagá-lo.
E dar dinheiro pra família do morto é ato de caridade porque se tem muita despesa nesse momento. Aliás, momento mais de alegria do que de tristeza para os mais velhos, que têm a cultura mais arraigada e demonstram abertamente a alegria em ver alguém sair desta para uma melhor.
E dar dinheiro pra família do morto é ato de caridade porque se tem muita despesa nesse momento. Aliás, momento mais de alegria do que de tristeza para os mais velhos, que têm a cultura mais arraigada e demonstram abertamente a alegria em ver alguém sair desta para uma melhor.
Estranhezas para
mim que ela ia explicando naturalmente.
Aos 88 anos me
dizia: quando eu ficar velha e doente
você vai cuidar de mim?
Eu tinha que falar
da minha idade já avançada também, da saúde perfeita dela, das 3 filhas que
jamais me deixariam cuidar, caso ela viesse a precisar.
Muitas vezes me comprometi dizendo que se
fosse o caso, cuidaria sim.
Mas quem tem 7
filhos, tem gente demais para dar atenção e é mais fácil sair confusão nos
cuidados, do que faltar o bendito.
E que
cuidados? Quase nenhum ela precisa.
Tirando a cadeira de rodas que usa por puro medo de usar uma perna "consertada" e que funciona direitinho se ela quiser... De resto, está tudo em ordem: come direitinho,
faz crochê, ama ver as borboletas nas flores enquanto eu as rego e repara nos
brotinhos da roseira.
Posso levar uma
mudinha da branca, D. Tereza?
Ah! da
branca? não quer da vermelha?
Ciumenta das
rosas, me oferece até orquídeas, mas a rosa branca vai ter que ficar pra outra
vez porque ela desconversa.
Realmente pouco se
precisa fazer fisicamente por ela.
Cuidados na hora do banho e ao passear no jardim da cidade,
basicamente.
Ela adora passear.
Vai conversando com todo mundo que encontra pelo caminho e as vezes eu penso
que ela é uma japonesa bem atípica. É
conversadeira. Eu diria até que ela é desbocada. Sempre foi um pouco.
E, agora que está
com a memória recente fraca, parece que tirou os limites sociais de convivência
e simplesmente fala pro gordo que ele é gordo, pro encurvado que ele é
corcunda.
Em muitos momentos tenho vontade de entrar dentro dos ralos da cidade e me esconder até ela acabar os comentários, mas não posso. Tenho que remendar o que ela fala e achar uma saída para as saias justas que ela arruma.
Acho que a pior
situação que passei com ela, numa mistura de risível e desconcertante foi no
hospital da cidade dela.
Dizendo que estava se sentindo "zoada" - e por zoada pensamos em tudo e qualquer coisa - resolvemos levá-la ao pronto socorro.
Nenhuma filha presente naquele momento, lá vou eu acompanhá-la.
Enfermeiros pra lá
e pra cá. Aguardamos atendimento. Ela só observa todo mundo. Ri para crianças que,
sei lá o porquê, estão no meio de
adultos.
Estranho a
quietude dela. Talvez seja porque não esteja bem de saúde mesmo, ou já estaria
falando com Deus e com todo mundo, penso.
Ela está muito
observadora. Segue, com os olhos, o
enfermeiro mais animado do PS.
Magricelo, dentro
de calças jeans bem apertadas, camiseta branca e jaleco é uma peça rara que
destoa dos demais. Acalma as mães aflitas e depois revira os olhos pra mim.
Percebo que ele
tem os olhos pintados com lápis. Lápis
pretos, passados caprichosamente abaixo dos cílios inferiores. É engraçado, mas
combina com ele - uma caricatura viva e solícita!
Carinhoso com as
crianças, explica pro garoto acidentado que o dentinho quebrou, mas que nos lábios não
precisará costurar nada. O menino dana a
chorar com a notícia e todos rimos. Ele
pega o menino no colo e passa na frente da minha sogra que o segura pelo braço
e pergunta na lata: você é homem ou
mulher? Você não tem peitos, mas parece mulher!!!
Ele dá uma gargalhada estrondosa e fala pra ela escolher. Para ele, tanto faz!
Ah! Minha sogra
querida!
Vinda do Japão aos
seis anos, tem pouca lembrança do navio. Só gravou a demora da longa viagem.
Jamais aprendeu a
ler, apesar das 3 filhas professoras. Viveu na roça, teve comércio, aprendeu
português e comeu batatas cruas - não sabia como usar aquela “comida diferente”. Trabalhou muito nessa vida nos afazeres da casa que era o que lhe cabia na dinâmica da família.
Prometida em
casamento aos 14 anos, achou o escolhido magricelo e feio, "mas deu um excelente
marido", ela fala até hoje.
Casou-se aos 17,
comenta.
As contas não batem, mas não há quem possa esclarecer!
Meu marido é seu
filho caçula e eu sou a nora...
Nora... Mas quando alguém pergunta, ela já não sabe mais responder nora de qual dos seus 4 filhos homens!
Uma
pena.
E uma graça também, porque a gente pode se reinventar quando está com ela e ser qualquer pessoa que quiser: ela acolhe muito bem.
Parabéns D. Teresa!!!